Muito curioso, no entanto, é que, talvez, refletindo tudo quanto acabo de relatar nessas notas biográficas, sinto-me presente em minhas obras literárias. Não só, é claro, como ficcionista, isto é, o criador dos enredos, dos personagens, dos episódios e dos diálogos, mas também o geógrafo imaginador das paisagens e cenários que emolduraram os quadros. E ainda o memorialista a evocar épocas, costumes, hábitos, músicas e linguagens do passado.

Como pano de amostra, podemos observar que no romance APARTAMENTO DE COBERTURA, apenas o ficcionista aparece, urdindo uma sátira em torno da vida mundana e permissiva da gente rica da Zona Sul da Cidade. Já na novela TIRO DE MISERICÓRDIA, o geógrafo contribui fornecendo paisagens áridas do Sertão do Pajeú, do Agreste Setentrional. Por outro lado, no romance O RAPAZ DA VILA MARIA e no livro das DONZELAS NA BERLINDA, em vez do geógrafo é o memorialista quem ajuda ao ficcionista a contar as suas estórias. Finalmente, nos romances ZÉ DO FOGUETE e, neste último aparecido, BIOGRAFIA DE UMA VELHA SENHORA, os três elementos se acham preponderantemente presentes.

O RAPAZ DA VILA MARIA memoriza uma importante etapa de minha vida sentimental. Não em relação ao enredo, nem quanto à abordagem de certos temas e, sim, em referência à paisagem que emoldura o romance. Aos mocinho e mocinha que chegam a um “happy end” e aos costumes, hábitos e episódios que marcaram o Recife na década dos anos 30. Aquele “subúrbio de ruas quietas e largas sem calçamento, marginadas de sítios frondosos e iluminados à noite, por filas de lampiões de gás” não é outro senão o paraíso romântico onde namorei, noivei e morei, por algum tempo, depois de casado. Uma Casa Amarela camuflada com a troca de nomes dos logradouros para não se identificar alguns protagonistas ali residentes. Mais que isso, a presença de Morena em que perfilei a minha namorada e a de Péricles, personagens em que me encarnei espiritualmente, meu temperamento esquivo e de excessiva timidez.

ZÉ DO FOGUETE, o meu melhor romance na opinião de Lucilo Varejão e da escritora paulista Ondina Ferreira, é uma outra página de saudade... Nele, evoco a Caruaru dos meus tempos de menino e adolescente, decorrente de um convívio usufruído em longas temporadas de vilegiatura e visitas por ocasião do Carnaval, São João e Semana da Pátria.

APARTAMENTO DE COBERTURA, segundo Orlando Parahym, é meu romance recifense. Moveu-me três intenções ao escrevê-lo. Procurei focalizar aspectos urbanos de diferentes áreas de nossa cidade a começar pelo centro. Pus em confronto a vida social tranquila, moralizada, poética dominante na classe média dos bairros periféricos e suburbanos com o artificialismo e a permissividade. Certo desregramento da burguesia residente na orla marítima da Zona Sul. E tive como dica o comentário de um crítico, meu amigo, considerando o RAPAZ DA VILA MARIA muito “bem comportado”. Deu-me, então, na veneta me atualizar, entre aspas, compondo um romance “mal comportado”, sem ferir a coerência do realismo dos personagens e da situação no linguajar e nas cenas a Jorge Amado.

Em TIRO DE MISERICÓRDIA e em alguns capítulos do ZÉ DO FOGUETE, o geógrafo deu a mão ao ficcionista para matar saudades de sua extinta atividade, tentando reconstituir, de memória, as paisagens sertanejas e agrestinas. Agora, impossíveis de serem observadas e interpretadas. O geógrafo faz lembrar o compositor musical surdo e daí uma afirmativa minha, em entrevista a um dos matutinos locais, que carpi o mesmo infortúnio de Beethoven.

A minha presença de memorialista ao lado de ficcionista se faz notar em vários contos do meu ESTÓRIAS DA VIDA, através da participação de certos personagens e de certos episódios, como até de manifestação autobiográfica - como acontece em BENÇÃO DE PÉTALAS, PRESENTE DE ANIVERSÁRIO e VENCI. O conto MACAQUINHO CHEIROSO é uma das histórias à moda de Trancoso, que inventava para o deleite de meus netos, quando crianças ao meu redor.

E a primeira novela DONZELAS NA BERLINDA conta de modo romanceado a desdita de uma prima, muito querida, que rompeu dois noivados e morreu septuagenária no “caritó”.

 



Hilton Sette continuou fazendo as suas anotações e as de seus personagens até meados dos Anos 90. Com o agravamento da doença e, posteriormente, o falecimento de sua esposa, em 8 abril de 1996, ele foi deixando de escrever aos pouquinhos. Contudo, passou a ler mais muitos de seus escritos através de nossos olhos.

Em produção doméstica, circulada somente no âmbito dos seus, Hilton reuniu alguns textos sob o título de “Carpindo Saudades”, dedicando à memória de sua esposa falecida. Esses textos falavam sobre o seu amor e os fatos corriqueiros da família, que havia construído com Lúcia.

Em 20 de dezembro de 1997, com assistência médica e afetiva, na tranquilidade de seu lar, muito lúcido e em paz, Hilton faleceu aos oitenta e seis anos. Deixou-nos uma riqueza inestimável que se presentifica na História, pelas histórias e em “Hilton Sette, Minha História – Apontamentos Autobiográficos”.

Família Hilton Sette