DONZELAS NA BERLINDA (1988)

Hílcia Maria Sette Melo Rêgo

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Um dos postulados freudianos a respeito da criação artística nos fala de um processo de catarse, uma terapia, onde o escritor afasta-se da realidade hostil e cria um mundo imaginário no qual projeta suas recordações da infância, procurando dessa forma os seus fantasmas íntimos e desconhecidos.

A obra literária do escritor Hilton Sette é sem dúvida um exemplo fiel desses princípios formulados pelo Mestre da Psicologia, Sigmund Freud. Houve uma época, na vida do autor de DONZELAS NA BERLINDA, em que ele se viu tolhido nas suas atividades didáticas e de pesquisador científico. A cegueira implacável era um fato consumado. E para evitar o desmoronamento de sua vida intelectual, voltou-se para a literatura, projetando o eco de suas fantasias na criação de heróis românticos, de paisagens descritas com requintes de um geógrafo, de mundos ideais numa perspectiva saudosista.

Sim, o escritor a quem me refiro é antes de tudo um ficcionista apegado ao passado. Talvez a genética explique em parte essa tendência. Também Mário Sette, seu pai, em quase todas as suas obras evidenciava costumes, aspectos religiosos, políticos e sociais vividos anteriormente, numa tentativa de fazer ressurgir episódios adormecidos nas décadas passadas.

A realidade temporal medida sob o prisma cronológico aparece como uma constante nos textos do escritor Hilton Sette. Criações como O RAPAZ DA VILA MARIA, ZÉ DO FOGUETE, TIRO DE MISERICÓRDIA, DONZELAS NA BERLINDA e BIOGRAFIA DE UMA VELHA SENHORA (ainda inédito) constituem marcos dessa viagem ao passado.

O título das novelas em estudo estaria bem coerente com esta assertiva – DONZELAS NA BERLINDA.

Donzelas (do latim = domnicilia, diminuitivo de domna) é um vocábulo de língua portuguesa prestes a se tornar um arcaísmo. Seu sentido - mulher-virgem - dentro dos conceitos morais e éticos da sociedade hodierna caminha para o desuso.

Berlinda, segundo Aurélio Buarque de Holanda em seu famoso Dicionário, é apresentada como "certo jogo infantil em que um dos participantes é alvo de comentários que lhe são transmitidos anonimamente. Estar na berlinda - ser alvo de comentários".

Ora, nos tempos atuais, esses folguedos antigos ficaram para trás diante do monopólio da televisão e, também nos nossos dias, ser assunto para fofocas não causa estranheza e não leva ninguém a se enrubescer.

A primeira das três estórias retrata como personagem central - Lydinha - no dizer do autor, já no primeiro parágrafo: "... Lydia à moda antiga, com y na grafia do nome, “referenciando o tempo, através do signo linguístico.

O escritor em sua linguagem saborosamente coloquial vai introduzindo uma estória simples e despretensiosa, onde os amores frustrados da personagem feminina vão desfilando num ambiente bem delimitado – nas cidades de Recife e Olinda, na década de 20.

Os festejos populares de Natal e Carnaval são bem reconstituídos e falam de uma vida sossegada e alegre, bem diferente da violenta e agressiva dos nossos dias.

A segunda novela - A Filha da Dona da Pensão - é a mais extensa e movimentada das três. Seus personagens ganham vida, expressividade, movimento. A Segunda Guerra Mundial como “pano de fundo", os comentários, os simpatizantes da causa alemã ou germanófilos, o entusiasmo do escritor pela causa aliada, deixando extravasar suas emoções através da personagem Senhora Duprat, elemento que se destaca por um francesismo acentuado.

O Capítulo intitulado "Os franceses reocupam Paris" transmite com fidelidade toda a vibração sentida por aqueles que viveram os dias de expectativa e triunfo do grande conflito mundial. E a linguagem acompanha o entusiasmo, no final do capítulo com a reprodução da Marselhesa.

"A Esposa pretendida", última das novelas, talvez seja a de desfecho mais surpreendente.

- Novela ou conto?

Não é fácil precisar com segurança os limites entre conto e novela. Certamente, a extensão da estória seria o principal argumento para distingui-los. Preferimos considerar o último texto de DONZELAS NA BERLINDA, um conto, pois suas características me levam a isso:

- Sua divisão em três capítulos, a saber - A proposta, A expectativa e A resposta dela - as etapas marcantes de início, meio e fim. O primeiro e último capítulo, acontecendo no tempo atual e o segundo, um retorno ao passado nas evocações de Xisto;

- A existência de dois únicos personagens - Xisto e Graciete;

- A peripécia, elemento indispensável ao conto que geralmente aparece no final - uma notícia, um fato, um personagem, surgidos inesperadamente, mudando o curso da estória.

A resolução ou desfecho vem no conto, implícita, sugerida ou mesmo ignorada, cabendo a inteligência do leitor desvendá-la.

Fonte: Prefácio de Hílcia Sette Melo Rêgo in SETTE, Hilton. Donzelas na Berlinda. Recife: ArtGraf, 1988.