ESTÓRIAS DA VIDA (1985)

Lucilo Varejão Filho

Este foi um livro que seduziu José Carlos Cavalcante Borges. O grande contista brasileiro compunha, então, a Comissão Julgadora encarregada de atribuir o "Prêmio Literário Cidade do Recife", de 1979, destinado a obras de ficção e patrocinado pelo Conselho Municipal de Cultura da Cidade do Recife. Ao ler os originais inéditos submetidos, sob pseudônimo, a julgamento, Zé Carlos espantou-se com a maturidade revelada por um dos concorrentes: a modernidade dos temas, o poder de juntar – sem quebra da lógica ficcional – os dois mundos aparentemente excludentes do real e do fantástico, além é claro da segurança da linguagem que não utilizava apelações vulgares, tudo levaria o admirável escritor à atitude que então tomou. Não conseguindo fazer prevalecer o seu ponto de vista atribuiu o 1° lugar ao livro "Estórias da Vida" - porque a preferência dos dois outros julgadores pendera para um segundo livro, igualmente de alto nível – José Carlos deixou expressos, na Ata do Julgamento do concurso, o seu desejo e a sua sugestão de que fossem publicadas pelo próprio Conselho Municipal de Cultura aquelas histórias (ou estórias, se preferirem) que lhe pareceram cheias de tanta maturidade literária.

A identificação, pós julgamento, da autoria dos originais, traria uma grande e geral surpresa: era o sr. Hilton Sette, respeitada figura dos nossos meios científicos, o autor de livro literariamente tão admirável.

A descoberta de um autor literário no geógrafo ilustre surpreendeu, evidentemente, a maioria dos pernambucanos que nele estavam habituados a ver o conceituado mestre universitário, autor de artigos numerosos publicados em revistas científicas e de comunicações diversas apresentadas em Congressos e Simpósios da especialidade, além, é claro, de uma famosa série didática (publicada em co-autoria com o também geógrafo ilustre Manuel Correia de Andrade), na qual tantas gerações de adolescentes aprenderam a ver o mundo.

O pouco tempo decorrido, entretanto, após aquela revelação, já permitiu – e antes que "Estórias da Vida" fosse publicado – a confirmação de Hilton Sette como autor literário: a publicação de dois romances (“O Rapaz da Vila Maria” e “Zé do Foguete”) trouxe essa confirmação dos seus dotes de escritor.

Dotes que, em pasmosa multiplicidade, se mostram nos contos que compõem este livro. E o que realmente espanta neste "Estórias da Vida" é essa multiplicidade de faturas, de técnicas de construção sem que se perca a unidade fundamental da " maneira" que identifica o autor.

Numa rápida indicação dessas "faturas" que assinalam a variedade de tratamentos literários dos contos do Sr. Hilton Sette creio que poderíamos citar a utilização do fantástico que se entrosa com o real sem deixar visível a separação dos planos que delimitam os dois campos, em contos como "Conclusão de Amor" (verdadeira obra-prima), "Que Telefonema" e "Benção de Pétalas ", dos quais pularíamos para "Um Pequenino Grão de Areia", tão repassado de lirismo, indo depois a " Padre Olívio ", que recebeu um tratamento francamente romântico e chegando ao moderno desenvolvimento dado a "Namoro de Elevador" no qual é possível distinguir um "jogo" à maneira de Jorge Luis Borges, jogo também , despistável até certo ponto em "O Sinal de Milena".

Assim, nessas "estórias" do Sr. Hilton Sette sai-se, às vezes, de um conto construído segundo as técnicas tradicionais do gênero e desemboca-se, de repente, em uma estranha fantasia. Fantasia que é, muitas vezes, apenas uma maneira de o autor apresentar uma opção de seu personagem sem servir-se da linguagem comum. É o que acontece com o final de "Como nos Contos de Fadas", em cuja leitura devemos mostrar-nos bastante sutis para não pensarmos em um "pastiche" das histórias da Condessa de Segur.

Se algumas vezes o Sr. Hilton Sette parece querer descer à literatura-reportagem como e o caso do conto "Maria das Carícias" sente-se, entretanto, que a sua preocupação verdadeira é dar um testemunho de todo o sofrimento humano que se encerra naquela história de "fait-divers", tão vulgar. Mas ainda aí, sabe ele altear o nível final do seu texto com a "trouvaille" do nome, tão simples que a situação se faz prenhe de ironia.

Mas onde o contista se mostra exímio é na pintura do vazio das vidas dos seres solitários (Veja-se "Presente de Aniversário") e na evocação de um passado que já foi rico em emoções nascidas do aconchego de outras presenças humanas. A essa capacidade de fazer boa literatura com a evocação saudosa de seres e ambientes passados (o que já nos rendeu tanta subliteratura) alia o Sr. Hilton Sette uma certa visão romântica da vida, embora esse fundo sentimental da personalidade do autor e que aqui ou ali transparece na "história pregressa" dos seus personagens (o menino feio; por exemplo, que se choca com o "fora" da namorada) não chegue a "envelhecer" a literatura que nasce da sua pena.

Apenas no final de um dos seus contos (o já citado "Presente de Aniversário") descobrimos no encontro, tão bem encaminhado, aliás, do Pai e Filha, a intenção de conduzir o leitor às lágrimas – processo o seu tanto "démodé" para a literatura que hoje se faz.

Mas algumas vezes o Sr. Hilton Sette mistifica o seu leitor sentimental (ou pelo menos adepto da literatura feita com bons sentimentos), jogando com ele o jogo da crueldade. É o caso de "A Mulher do Ceguinho" em que desprevenidos seguimos uma narrativa sem tropeços, na qual a "normalidade" do texto caminha de par com uma história em que o lado "bom" do leitor se compraz com a "justiça" do encaminhamento da ação, mas recebe, no final inesperado, o contravapor que a crueldade do mundo reserva quase sempre aos retos e aos bem intencionados.

Outras vezes o autor nos desnorteia como no conto "Dela" em que, com habilidade rara, quase nos leva a admitir a plausibilidade de sua paixão por uma linda... porquinha. E quando, já convencido, julga o leitor que está diante daquilo que na linguagem das comunicações científicas se intitula um "estudo de caso" – o que traria o conto para o terreno da psicanálise – uma inesperada participação de casamento, chegada pelo correio, da uns toques kafkianos à narrativa.

A esses dons de misturar, sem fissura, o real com o fantástico, o lógico com o absurdo e que me parecem fornecer os melhores momentos da arte do sr. Hilton Sette, ainda alia o novo autor uma invejável habilidade; inteiramente inesperada em escritor quase estreante, de construir o "suspense”. E quem ler "o Toc-toc-toc na Porta" há de sentir que é com uma maestria hitchcoquiana que o sr. Hilton Sette consegue fazer crescer no espírito do leitor a angústia que sufoca Zita, no quarto escuro da pensão de raparigas, onde espera o homem que virá resgatá-Ia; ou ainda quando, em poucas linhas, consegue fazer-nos correr um "frisson" na espinha, ao jogar, em "Venci...”, um carro, a cem quilômetros por hora, na traseira de um ônibus.

E é, ainda, o "suspense”, o que vai amarrando os passos de Frei Gerson, a figura central de "Meus Três Namoros", que se encaminha para o parlatório, onde o espera uma antiga namorada, e faz crescer a nossa ansiedade à medida que os pés do bom frade se põem a arrastá-lo para a sua perdição.

Por tudo isso, creio que se possa dizer que poucos, dentre os nossos novos autores, capazes, como o Sr. Hilton Sette, de oferecer visão tão caleidoscópica da vida, através de tão ricos processos estruturais de seus textos, vazados, aliás, é bom que se diga, na melhor linguagem literária.

Recife, bairro do Prado abril de 1984.

Fonte: Prefácio de Lucilo Varejão Filho in SETTE, Hilton. Estórias da Vida. Recife: Editora ASA Pernambuco, 1985.