O colega e amigo Maurício de Barros, outro dia, em uma das “Cartas à Redação” do Jornal do Commércio, referiu-se à próxima comemoração do cinquentenário de formatura dos bacharéis de 1935 da Faculdade de Direito do Recife, proporcionando-nos um mundo de evocações de tão marcante quadra de nossa juventude.

Como se ainda tivéssemos olhos para folhear um velho álbum com fotografias desbotadas, todo aquele passado emergiu-nos à memória num desfile de lembranças estranhamente muito nítidas de lugares, ambientes, episódios, flagrantes e figuras de colegas e mestres, conseguindo nos transportar no tempo a um Recife de meio século atrás.

Em primeiro plano, o interior da Escola de Tobias com seus corredores laterais delimitando o pátio central, os grandes bancos de madeira – em que só acertávamos sentar no encosto -, os anfiteatros das salas de aula, o salão de estudos anexo à Biblioteca e o salão nobre regurgitado de nossas famílias, autoridades, pessoas gratas... A Mesa de Presidência no final da Colação de Grau.

Indeléveis os instantâneos de alguns de nossos mestres no exercício do magistério. Por exemplo, o eloquente cavanhaque do monumento jurídico, encarnado na pessoa simples e veneranda do nosso professor de Civil e Paraninfo, Hercílio de Souza. As atraentes aulas de Penal, de preferência sobre Crimes Sexuais, do gordo Gervásio Pioravante, usando uma terminologia técnico-popular, capaz de ferir, na época, os ouvidos de nossas três coleguinhas de saias. A elegância no trajo e a delicadeza na fala de Odilon Nestor em tiradas de Direito Internacional. E o espírito lúcido, objetivo e prático de Alfredo Freyre, a esmerilhar questões de Economia Política.

Os colegas, estes comparecem ao nosso festival de recordações no vigor das idades que os conhecemos. Temos a impressão de estar vendo e ouvindo o Maurício Barros a tamborilar na mesa de sua banca e cantarolar o Fox então em voga: “Maria da Luz, de todos nós é o ai Jesus”. Também o chapéu-chile quebrado na frente, a gravata de poeta e as polainas do saudoso Moacir Albuquerque. A inseparável dupla intelectual de Aderbal Jurema e Odorico Tavares. O “sorriso colgate” de Danilo Ramires. Os poemas moderníssimos do outro Danilo, o Torreão. Quem ainda se lembra dos trejeitos mímicos da “Lagartixa Elétrica”? Ou as discussões acaloradas sobre temas jurídicos do Jurandir Carapeba?

A nossa turma não fazia exceção na época em que se dividia, em três, as linhas de pensamento filosófico insufladas pelo clima de agitação revolucionária, que intranquilizava o País. Havia os que insistiam ou simpatizavam com as camisas verdes; os que usavam gravatas vermelhas e os que, como nós, em tal semáforo de ideologias políticas, se tivéssemos de escolher um símbolo, preferiríamos o amarelo, significando vocação democrática.

Durante os cinco anos do Curso, não obstante o entusiasmo pela “República Nova”, implantada em outubro, a insegurança pública através de propaganda subversiva, boatos, prontidões de quartéis, ninhos de metralhadoras em pontos estratégicos da Cidade, levantes como o do 21 B.C. em 31 perturbações da ordem, tudo num crescendo até culminar com a Intentona Comunista em novembro de 1935. E nas vésperas de nossa formatura, desencadeou-se uma tremenda repressão policial com caça aos suspeitos, invasões de domicílio, prisões incomunicáveis dando ensejo a que um nosso colega muito “cor-de-rosa”, dado como desaparecido, realizasse uma aparição fantasmagórica, em verdadeiro desafio às autoridades presentes, no momento exato em que seu nome era anunciado para colar Grau. Tornando, de imediato, a levar sumiço sem deixar rastro.

Os bacharéis de 35, talvez em sua maioria, não se profissionalizaram dentro do campo das atividades jurídicas. Um fenômeno, esse tão comum naquele Recife de cinquenta anos atrás, pobre em alternativas de cursos superiores oferecidas. Havia a Faculdade do Derby a formar médicos, odontólogos e farmacêuticos. A Escola da Rua do Hospício a diplomar engenheiros e químicos industriais e a Faculdade de Direito que então abrigava não só futuros advogados e magistrados, como também tantos quantos ali buscavam um sólido lastro de Cultura Filosófica ou Sócio-humanística.

Assim, egressos de nossa turma e palmilhando por caminhos diferentes, vários colegas lograram alcançar posições de destaque em atividades, dentre os quais, ocorre-nos lembrar o Senador Aderbal Jurema, o Governador Eraldo Gueiros, o Escritor Álvaro Lins, o Educador Aluísio Araujo, o Professor Moacir Albuquerque, o Geógrafo Mário Lacerda de Melo, os Jornalistas Odorico Tavares, Teófilo de Barros Filho e Manuel Diegues Júnior, os Magistrados Jurandir Azevedo e Aníbal Cavalcante, o Poeta Danilo Torreão, o Advogado André Lombardi.

Quantos os que já dormem o sono derradeiro e quantos os que restamos vivos, inexoravelmente, septuagenários?

Guardo carinhosamente, em recortes do “Diário da Manhã” e do “Diário de Pernambuco”, duas coleções de perfis de todos nós os então bacharelandos. Uma em trabalhos ilustrados com caricaturas dos perfilados pelo lápis do inesquecível Nestor Silva e redigidos por nós mesmos, uns dos outros, e a outra em sonetos rimados em clima de gozação e até de irreverência da lavra do Poeta Leo-Lins, o nosso Leopoldo Lins.

No próximo dia 7 de dezembro, os nossos cinquenta anos de formados. A essa altura, aos 74 anos de idade, podemos olhar para trás e avaliar o que representaram os cincos anos de Curso Jurídico em nossa formação intelectual e profissional. Tudo quanto aprendemos - com os mestres, aulas, estudos, provas parciais e promoções por média na tradicional Faculdade de Direito do Recife somados ao que aproveitamos nas cinco séries do Curso Fundamental, segundo a Reforma Rocha Vaz – permitiu-nos aprofundar os conhecimentos no campo humanístico da Sociologia, da História e da Geografia, encaminhando-nos vocacionalmente para as atividades do magistério secundário e superior.

Agora aposentado, após 42 anos de ininterrupto exercício das funções de professor e pesquisador de Geografia, sinto a ventura de reencontrar um antigo “hobby” da juventude e sou hoje, igualmente por vocação e herança paterna, um ficcionista de contos e romances ou como diria Monteiro Lobato “um escrevinhador de lorotas”.