ESTRANHA PENITÊNCIA (1995)

Olímpio Bonald Neto

“As muitas vidas do Prof. Hilton Sette”

Quantas vidas há numa só vida?

Quantos cada um de nós somos? Vive-se a vida histórica que sofremos e vivem-se as vidas sonhadas que alguns, algumas vezes, captam e verbalizam ou objetivam através da produção intelectual e artística. Daí, quase sempre, se ver e se viver mais intensamente o que se sonha na multiplicidade dos "eus" que vivem e veem além de nós.

O ficcionista, então, é o que tem muitas Vidas e vê muito mais e mais além da sua vã realidade.

O Prof. HILTON SETTE, o Geógrafo respeitável, o sisudo Mestre dos exatos números estatísticos, dos fatos reais e da concretude científica um dia perde a vista e passa a ver (e a viver) outras muitas vidas.

Continuasse vendo e morreria cego para os mundos e os personagens que seu intenso viver guardara na memória. Fechadas as portas visuais para o exterior abriram-se-lhe as mil portas e janelas por onde seus leitores alcançam paisagens, tempos idos e vividos, pessoas e paixões humanas, dramas calorosos, emoções reais, concretas situações imaginadas, urdidas com as linhas da experiência, tratadas conforme os melhores modelos.

A narrativa seja ela curto conto, a novela ligeira ou o denso romance, exige do seu autor, antes de tudo, o saber do contador de estórias que conquista a atenção do leitor ou do ouvinte nos primeiros instantes e mantém sempre crescendo a curiosidade, linha após linha, página a página, a espicaçar o inquisidor que há em cada adepto desse gênero literário.

Qualquer que seja a Escola literária a ficção se impõe face ao enigma, o segredo, o mistério que clama por solução nos problemas engendrados ao longo da narrativa. Os mestres do suspense bem o sabem. A curiosidade, a busca do desconhecido, do que intriga e interroga e o que move a ciência, as artes e a própria vida, cada um procurando suas respostas. A maneira de dizer pode variar da linearidade da estória romântica desenvolvida com princípio, meio e fim até as engenhosidades das frases e das palavras preciosas, inventadas ou decompostas, numa prosa arrevesada que exige esforço especial e participação erudita do leitor para seguir o fio da meada, alcançar os elementos significantes, descodificadores dos mitos e das figuras literárias construídas, capazes de levar à plena compreensão do texto com sua mensagem artística.

Tudo pode ser proposto e experimentado, o que, porém não pode faltar é o enredo, a trama vital, o encontro ou desencontro de corações e mentes, com as emoções, as paixões, as virtudes e os vícios com que são construídas as Vidas humanas e que alimentaram os mitos dos deuses quando os deuses viviam a mitologia dos homens.

E Hilton Sette fez-se contador de estórias quando o destino – para não dizer a Sorte ou o Acaso (a que alguns chamam Deus) lhe arrancou as vendas da imaginação criadora. E haja a florescerem Vidas e Personagens dos papéis (e das lembranças de papéis) antigos, amarelados nos escaninhos da memória ou das gavetas do birô. Anotações preservadas nos cadernos de cálculos de permeio às descrições didáticas, com pedaços de emoções e de "causos" registrados, como borboletas alfinetadas nos museus recolhidos pelas trilhas da existência vivida no Recife, ou em Olinda, nos luminosos dias da infância de banhos de mar e de retretas adolescentes ou de pesquisas do adulto laborioso pelas trilhas ressecadas dos sertões nordestinos.

A rigor um Prefácio que se preza deve predispor para a leitura do texto principal. Um mero apêndice que vem anteposto ao apetite e a curiosidade do leitor. Um antepasto de picantes iscas. "Couvert" literário sem maiores pretensões que espicaçar as glândulas salivares da imaginação.

Podemos começar dizendo que Hilton Sette consegue CRIAR PERSONAGENS que vivem ou viveram entre nós de tão reais. Gente de carne e emoções que sonham e lutam plenos de valores e de defeitos humanos. Como cada um de nós. Nosso vizinho, nosso parente, nosso colega de sala ou de cela. E nisto reside uma das suas maiores virtudes... Inda quando narra dramas intemporais que poderiam ter sido vivenciados em qualquer época, há sempre tal cunho de veracidade e realismo que convence o mais avisado dos leitores. E sempre fica a dúvida de estar-se lendo uma ficção ou uma confissão.

Talvez por isto o seu vaqueiro age, fala e reage como real sertanejo perdido nas lonjuras das mangas de gado, rude no trato com as malícias humanas, terno no respeito às coisas dos bichos e da terra e fiel aos duros princípios da dignidade, da honra e da lealdade que balizam a vida do povo das caatingas. Sem cair, todavia, na figurinização convencional do sertanejo "antes de tudo um forte" euclidiano nem fazê-lo vestir a máscara pasmacenta do Jeca ridículo, opilado e roído de vermes, fruto da visão redutora do preconceito contra o emigrante nordestino, discriminado pelo sulismo capitaleiro de um neo-fascismo caboclo e modernoso que vicejou no monturo da modernidade colorida. Paisagens e personagens coexistem, mas sóbrias e reais.

(...)

Afinal neste último romance onde narra a ESTRANHA PENITÊNCIA de uma jovem olindense nos princípios do século, o ilustre confrade alcança a plenitude de sua arte narrativa. O pleno domínio do gênero, a precisão vocabular, a perfeição das descrições, o desenvolvimento moderno dos episódios com "lances" que se encadeiam até o final surpreendente, torna este um livro fascinante que se Iê duma assentada, ávido da página seguinte, do novo capítulo.

Olinda dos anos vinte é recuperada e chega fresca, luminosa e perfumada de odores provincianos dos cajueiros em flor, da maresia de verão, dos jasmineiros nos sobrados com os sinos ecoando nas tardes de procissões, as retretas ressoando nas praças, as beatas de véus cobrindo as cabeças, aligeirando os passos nas ladeiras para não perderem a missa da madrugada.

Hilton Sette entretece muitas vidas neste seu romance. Resgata duas, três, gerações de autênticos olindenses desde a chegada dos primeiros Viegas, vindos da Galícia lusitana com a Família Real de D. João VI e localizando-se nas imediações da barra de Catuama, entre Pontas de Pedras e a ilha de Itamacará, a poucos quilômetros de Olinda.

Como hábil artesão da ficção vai e volta ao longo da História flagrando instantes decisivos, marcantes dos personagens e de seus antepassados, de modo a moldar caracteres e personalidades que atuam na vida coerentemente com suas circunstâncias. A zeladora virginal e dedicada solteirona é quem traz o maior pecado, aumentado no desespero de sua religiosidade crendeira. O Tio, carteiro e eficiente nas funções domésticas, é um pequeno burguês preconceituoso que conversa com personagens reais, quando entrega cartas ao escritor Mário Sette, então residente em Olinda e (coincidência...) o pai do menino Hilton raquítico e mimado, que viera para os banhos salgados milagrosos na talassoterapia das ondas do mar, na praia do Farol.

E, entre os dramas emocionais e subjetivos, o fiel memorialista reproduz coloridas cenas da vida provinciana. As procissões, as pescarias, os Natais, os festejos carnavalescos, a zona do meretrício no cais do porto onde os jovens eram iniciados nos mistérios do sexo e os mais velhos alimentavam as fantasias devassas com as raras francesas que, diziam, escolavam os nativos nos requintes da putaria "civilizada"...

Intrigas paroquianas e dramas fortes, traições conjugais, crimes e deslizes morais, nobres atitudes e comportamentos exemplares, amor e ódio, a comporem, num mundo vívido e real, uma narrativa fascinante, especialmente para quem, como nós, viu, ouviu e viveu os cenários nos interiores de sobrados olindenses convivendo com gente daqueles tempos das muitas vidas do Prof. Hilton e de todas as Vidas e todos os tempos dessa cada dia mais jovem e atual Olinda mágica.

Fonte: Prefácio de Olímpio Bonald Neto in SETTE, Hilton. Estranha Penitência. Recife: Editora Comunicarte, 1995.