Fui um autodidata em quase todas as etapas de minha formação cultural e profissional. Assim é que, nas minhas qualificações de estudante, funcionário público, professor, autor de livros didáticos e de divulgação científica, geógrafo pesquisador e escritor ficcionista, consegui assimilar e sedimentar conhecimentos, habilidades e práticas por minha conta e risco, valendo-me da iniciativa própria e de uma curiosidade nata. Poderia até dizer que “muito mais eduquei do que fui educado”.

Talvez, duas razões expliquem esse desafio. O fato de haver nascido no começo do século e convivido com uma Recife, ainda, muito carente de instalações educacionais e de diversificações de cursos de ensino especializados. E, também, devido ao meu temperamento introspectivo, mas, no entanto, cheio de entusiasmo e de força de vontade, satisfazendo-me em vencer, sozinho, as dificuldades conforme os objetivos pretendidos.

O meu autodidatismo vem da primeira infância. Acontece que, aos quatro anos de idade, na data de meu aniversário, recebi, entre os clássicos presentes, um bonito jogo com vinte e quatro cubos de madeira, ostentando cada um em suas seis faces, letras maiúsculas e minúsculas do abecedário. Esse brinquedo educativo despertou-me o desejo de compor nomes de familiares, serviçais, plantas, animais e até pequenas frases, alfabetizando-me, assim, a tal ponto que aos cinco anos já lia sem gaguejar, nem soletrar notícias dos jornais, conforme meu pai registrou em seus apontamentos autobiográficos.

Estudei todo o curso primário em casa através de aulas particulares. Meus pais haviam perdido o filho mais velho com três anos e meio de idade e esse fato lhes fez crescer uma superproteção, colocando-me quase numa redoma. Temiam o meu convívio com outras crianças, na escola, no sentido de evitar a minha exposição a doenças contagiosas e, também, com receio que eu viesse a aprender maus costumes e mau vocabulário.

Conheci quatro mestres primários. O primeiro minha mãe, usando a “Cartilha das Mães”, a “Carta de Tabuada”, cadernos para cópia e ditado e uma lousa riscada a crayon para as quatro operações fundamentais da matemática. Com ela aprendi, como se dizia outrora, “a ler, escrever e contar”.

Os outros três mestres, sucessivamente, dois primos-irmãos, Newton Maia e Bruno Maia, e uma professora diplomada, Maria José Medeiros - que adotou os livros de leitura da série “Coração de Criança”, de Gramática de Júlio Pires Ferreira, de Aritmética de Trajano, de Geografia de Lacerda e de História do Brasil de Rocha Pombo.

Privado do convívio de uma classe, não conhecia colegas com os quais pudesse trocar idéias ou realizar trabalhos coletivos de pesquisas. Sempre, estudei só. Cumpria tarefas, resolvia problemas, esclarecia dúvidas em dicionário ou enciclopédias e caminhava à frente das lições marcadas pelos mestres que me visitavam três vezes por semana.

Quando concluí o curso primário, meu pai insistiu em que continuasse a receber aulas particulares, compondo uma pequena turma, de cinco alunos daquele que seria mais tarde o notável criminalista, Aníbal Bruno de Oliveira Firmo, em sua residência, na Rua de Santa Cruz.

Fazia-se, então, o Curso Secundário no chamado Regime de Preparatórios Parcelados. Para se obter matrícula em faculdades superiores se exigia a apresentação de doze certificados de aprovação em exames realizados no Ginásio Pernambucano, filiado ao Colégio Pedro II, da Capital Federal, do Rio de Janeiro. As disciplinas obrigatórias eram Português, Francês, Inglês, Latim, Aritmética, Álgebra, Geometria, Geografia, História Universal, História do Brasil, História Natural e Físico-química.

Em fins de 1924, estreei enfrentando as rigorosas bancas do Ginásio Pernambucano, submetendo-me aos exames de Português e Aritmética, quando sofri um decepcionante fracasso. Inexperiente e nervoso, na condição de um neófito em lides estudantis, estava enfatiotado de novo, desde os sapatos de verniz ao chapéu de massa, levando no bolso a caneta-tinteiro e o lenço perfumado. E, assim, apresentei-me para a prova escrita de português em uma luminosa manhã de novembro. O alvoroço da multidão de jovens a se deslocar pelos corredores do velho Ginásio buliu, ainda mais, com o meu estado de espírito.

Beneficiado com a minha embrionária vocação de ficcionista, não me saí mal ao dissertar sobre “Uma cena de loucura em sala de espera de consultório médico”. Tema do ponto sorteado pelo trio examinador constituído pelo Padre Batista Cabral, Jonas Taurino e o Presidente Leal de Barros. No entanto, cometi e repeti um erro que refletiu bem a minha tensão nervosa ao grafar o vocábulo “perturbado” sem o “r” da segunda sílaba. O bastante para minha prova merecer nota três.

De tarde, ao prestar a prova oral, o Padre Cabral mandou-me ler e dividir as orações de uma das estrofes d’Os Lusíadas de Camões. Fez-me duas ou três perguntas de análise léxica e despediu-me com um “vai com Deus”- a senha dos reprovados – depois que inventei o neologismo de “sublimíssimo”, como superlativo de “sublime”. Quem pagou, realmente, o pato por esse meu insucesso foi a copa do meu chapéu de massa novo, servindo-me de anteparo ao choro convulso que me acometeu ao chegar a minha casa diante de meus pais.

No começo do ano de 1925, entrou em vigor a reforma de Ensino Secundário Rocha Vaz que substituía o Regime dos Preparatórios Parcelados por um Curso Fundamental, dito madureza, em cinco séries anuais; abrangendo disciplinas de exames finais com exigência da prova oral, além de escrita.

Nesse mesmo ano, meu pai ingressou no corpo docente do então Instituto Carneiro Leão para lecionar “Instrução Moral e Cívica”. Essa experiência lhe fez desanuviar a má impressão sobre os colégios particulares, a ponto de me convencer a abandonar os preparatórios, já conquistados, e iniciar o novo curso para melhor alicerçar minha cultura humanística. Estudei Português, Latim e Desenho em quatro anos; Francês e Inglês, em três anos; Aritmética, Geografia, História Universal, Física, Química e História Natural, em dois anos; Álgebra, Geometria, História do Brasil, Cosmografia, Filosofia e Instrução Moral e Cívica em um ano.

Graças a Deus, aceitei o conselho e dediquei-me, com máximo proveito e êxito, às três primeiras séries no Instituto Carneiro Leão; à quarta série no, então, Ginásio do Recife e à última série, no Ginásio Pernambucano.

Se a primeira experiência nos exames foi um fiasco, resultando na minha única reprovação do currículo estudantil, naquela ocasião, pude lograr dois pequenos triunfos na obtenção de duas notas dez, junto a dois professores rigorosos de que fui aluno. A primeira nota foi resultado de uma prova oral de Aritmética no Instituto Carneiro Leão, sendo examinador o matemático Luiz Freire, pai do meu saudoso amigo e ex-discípulo Marcos Freire. Fui, demoradamente, arguido nos três quesitos do ponto sorteado, demonstrando teoremas, resolvendo exercícios práticos e solucionando uma complicada “regra de companhia” com valores do antigo sistema de pesos e medidas, segundo Compêndio de Serrasqueiro. A segunda foi atribuída a uma prova escrita de História Natural, no Ginásio Pernambucano, aplicada pelo Dr. José Costa Pinto e versando sobre a influência do clima na distribuição e diversificação da flora e da fauna na superfície da Terra - tema ecológico muito associado à Geografia, já de minha simpatia.

A Revolução de Outubro de 1930, que apregoava vir sanar o Brasil de todas as suas mazelas político-administrativas, ao lado de iniciativa inegavelmente positiva, trouxe também, entre outros tantos males, no campo das práticas pedagógicas, a substituição dos exames finais em todos os níveis do ensino pela aprovação por média de aproveitamento. Em face dessa concessão, naquele ano, apenas houve um único estudante em todo o País a prestar regularmente as provas escritas e orais das matérias da quarta série do Ginásio Pernambucano. Foi, por mais incrível que pareça, o jovem Sérgio Godoy Magalhães, irmão do já líder político Agamenon Magalhães. Acidentalmente, o colégio em que ele estudara omitiu seu nome da relação enviada ao velho Ginásio para emissão dos cerificados. Um fato curioso.

Em princípios de 1931, de posse, afinal, dos comprovantes de conclusão do Curso Secundário e de ter recebido a 3a Categoria pelo E.I.M. 216, cuidei de me preparar para o vestibular. Meu pai não escondia o desejo de que os filhos se diplomassem em nível superior, objetivo nunca por ele alcançado, embora recebesse amiúde o tratamento de “Dr. Mário Sette”. Deferência, aliás, que ele, na intimidade, gostava de comentar: “melhor parecer e não ser do que ser e não parecer”.

No Recife, porém, naquela época, só funcionavam a Faculdade de Direito, de Engenharia, de Comércio e de Medicina formando médicos, odontólogos e farmacêuticos. Nenhum desses cursos me atraia como predestinação profissional. Escolhi a Faculdade de Direito. Não porque pretendesse me dedicar à Magistratura, ao Ministério Público, à Advocacia ou qualquer atividade dentro do campo jurídico e sim, porque via na estrutura daquele curso as Ciências Sociais - Economia, Política e mesmo Jurídica – utilíssimas a um bom lastro cultural.

A minha passagem pela Casa de Tobias pode ser dividida em duas fases. Durante os dois primeiros anos, fui o aluno assíduo, altamente interessado em todos os eventos acadêmicos. Em fins de 1932, porém, meu pai viu-se designado a dirigir os Correios e Telégrafos de Alagoas e pediu-me para acompanhá-lo. Assim, passei a ser mais um entre meus colegas que residiam e trabalhavam fora de Recife, possuindo, na Faculdade, correspondentes que nos asseguravam a frequência, enviavam esquemas de aulas e indicações bibliográficas. E só aparecíamos por ocasião das provas parciais de junho a setembro. Ainda hoje sou grato aos meus queridos companheiros de turma, Danilo Ramires de Azevedo, Mário Lacerda de Melo e Aníbal Cavalcanti, que me prestaram esse obséquio. Assim, voltei ao meu didatismo de estudar sozinho.